Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe



Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe


quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Crónica das Avós

A crónica das avós, é talvez a crónica mais complexa de escrever. Adjectivo-a como complexa porque é muito difícil descrever em palavras uma Avó. Prefiro dar-lhe um nome: Lurdes (avó Lurdes), pronúncia cantada do Sul, olhos singelos cor-de-esmeralda, cabelos curtos tingidos de preto, pequena como uma ervilha, inquieta como o vento e a transbordar amor. Saudades...
E, pergunto-me se não serão assim todas as Avós?

"Conheci as senhoras-avós, a quem prefiro chamar vovó, quando fugi do meu reino transparente. Esperavam-me com olhos reluzentes e uma ânsia quase arrasadora de colo com uns papéis coloridos e  mil balões arco-íris. Falavam aos gritos, vozes estridentes e apressadas, e rapidamente percebi que a vida cá fora não ia ser fácil...
Fugazmente, a mais comprida, elevou-me nos braços e apertou-me tanto que quase não conseguia respirar. As mãos eram gigantes (quase do meu tamanho), voz elevada e pele cor de cevada. Timidamente, a outra, lábios de morango, com cheiro a gelado de amoras, prendia os meus dedos fininhos por entre os dela. E, o meu "tum-tum" tuntunzava como um cavalo a galope de tanto amor.
E, foi assim que conheci as vovós, a cor de cevada e a lábios de morango, que comigo constroem as  crónicas da minha vida."


Esta crónica é uma mera introdução às personagens mais importantes da crónica do príncipe sem medo.


Noite de Natal

Os dias, aliás as noites, passadas no sítio das caixinhas transparentes, fazem-me ser mais que Pediatra, fazem-me ser uma Mãe que já viveu uma história desses reinos.
E as histórias desses reinos são muitas vezes muito difíceis... Reinos onde os príncipes e princesas se esquecem de engolir o ar, de fazer o coração saltar e de muitas outras tropelias.
E, estar deste outro lado dos reinos, trajada com um pijama outrora cor de neve, depois de já lá ter vivido, tem um sabor quase estranho.

"Noite de Natal: a Mamã foi mais Pediatra, viveu com outros príncipes e princesas, as suas aventuras quase destemidas, tentou corrigir as suas asneiras e esqueceu-se da hora dos presentes porque estava de touca colorida e pijama desbotado a mexerixar nas máquinas ensurdecedoras.
E, como a minha Mamã, muitas outras Mamãs estiveram a cuidar de outros príncipes e princesas, para que outras Mamãs deixassem de ter mãos trémulas e olhos lavados por água salgada...
De manhã bem cedinho, eu já podia ter a minha Mamã de cabelo esparguete com cheiro a canela... Por isso, acho que não fiquei triste!"



sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Amiguinho

O príncipe sem medo tem um companheiro de aventuras e desafios, com os mesmos cinco anos, a quem baptizei (diria até estupidamente) de Amiguinho. Desbotado, cor de papel velho, diria quase assustador, continua a ser o amigo de sempre, insubstituível e tenho terrores nocturnos com o pensamento de um dia se perder...Eis, a crónica do Amiguinho


"O Amiguinho de traje cor-de-mel, mãos de veludo, olhos redondos e capuz com um floco de neve na ponta foi desde o primeiro dia o meu companheiro inseparável. Não sei de onde veio, quem é a sua Mamã, mas foi ele que encostado à minha barriga-balão esteve sempre presente nos meus momentos de pouca doçura. Ouviu-me reclamar, dormir, ouviu a minha Mamã, as senhoras-fadas. Fez travessias ao meu lado pelos corredores assustadores de tectos cinzentos e vazios rumo a mais um desconhecido. E, nos olhos redondos e parados, encontrei o meu primeiro e melhor Amigo. 
Não lhe consegui dar um nome digno até hoje, até porque até há bem pouco tempo ainda não sabia como fazer para chamar as coisas e as pessoas, mas agora que já sei Amiguinho parece perfeito, e como ele não fala  (tal e qual como eu não falava), não se pode queixar. 
Tem cinco anos (como eu), mas já parece muito velhote, enrugado como as minhocas e magrinho como um fio de chuva. Fica zangado quando vai tomar banho naquela máquina que rodopia e que o faz cheirar a mimosas (e eu confesso que também não gosto daquele perfume). Fica cansado quando vamos  para a ginástica dos muitos príncipes e princesas como eu. Fica contente quando vamos para os lençóis brancos acabados de esticar. Mas, acho mesmo que ficou muito triste de ter perdido o seu capuz numa tarde de chuva em que o deixei cair e por isso ficou enrugado como as minhocas e magrinho como um fio de chuva.
O Amiguinho não diz nada, não anda, não come, não é bom aluno como eu, apesar de trabalhar como eu em todas as lições que tenho tido. 
Mas está sempre lá de mãos dadas comigo a sorrir com os olhos redondos que espreitam num traje desbotado, outrora cor-de-mel."

Desbotado, mãos de papel e ainda com capuz (que agora já não tem)

Doce ou azedo?


A crónica do dia-a-dia do príncipe sem medo no reino encantado das paredes transparentes e de senhoras-fadas contado na primeira pessoa, tal como eu o imagino...


"Nos três dias seguintes e nos restantes que se seguiram,  por entre príncipes e princesas quase iguais a mim,  foi assim.  Por entre quatro paredes transparentes  com quatro janelas que abriam e fechavam delicadamente, conseguia ver movimento lá fora... Passavam de um lado para o outro umas senhoras-fadas, de mãos quentes com dedos de algodão, que conseguiam ouvir o meu grito de entusiasmo e abriam as janelas para me tocarem. Só não percebiam que não queria aquela feroz agulha no pé a cada duas horas, nem aquele senhor branco e doce como mel na minha boca, porque não sabia o que fazer com ele. E, assim estive dias e dias a fio, a tentar ficar mais doce, por entre fios que entravam e saiam de mim.
Mas as mãos mais quentes eram aquelas que voltavam todas as manhãs, que me punham no colo e que cantavam ao meu ouvido baixinho. As que me traziam trajes de príncipe com cheiro a nuvem e que me tocavam incessantemente repletas de vontade de chorar. As que paravam suadas depois da picada no pé à espera de ouvir um valor aceitável ou pelo menos mais aceitável. As que me seguravam na cabeça e durante minutos sem fim insistiam em fazer-me beber aquilo branco com sabor a mel.
Também percebi que os outros príncipes e princesas, cada um no seu reino, afinal não eram quase iguais a mim... Tinham outras Mamãs, tinham outros fios e alguns tinham até umas máquinas amiguinhas (digo eu) que as senhoras-fadas com os dedos de algodão carregavam.
No reino transparente mesmo à frente do meu, havia uma princesa de cabelos cor do sol e olhos arregalados, a quem tinham feito um desenho no sítio que faz tum-tum, que gritava alto e talvez por isso, vinham muitas máquinas iluminadas e senhores de ar sério para a espreitar. (Nunca mais a vi!)
E iam e vinham, e iam e vinham...novos príncipes e novas princesas... Mas eu continuava cá."

Um berço e um balão

O Era uma vez é uma crónica escrita em modo ainda barrigão, porque a verdadeira história não foi bem assim...ou antes, até foi mas parou em "E, por entre colos fininhos e colos mais gordos...".
A verdadeira história continua assim:

"E por entre colos fininhos e colos mais gordos, quase escangalhados como um bolo-rei, senti muito frio e uma fraqueza tal que só me apetecia gritar. Um grito que não saia bem alto, um grito baixinho, quase surdo e que me tirava as forças. Por entre todos os trapos azuis que me envolviam, espreitavam uns olhos assustados que me abanavam persistentemente. Só queria voltar lá para aquela almofada e ter a minha fitinha de volta. Restava-me um ser aveludado e castanho-mel de olhos redondos e imóveis encostado à minha barriga. 
E, no meio de toda esta balbúrdia de estranheza, senti uma lancinante e feroz agulha no pé da qual saiu uma gota vermelha que ditou o meu destino durante dias e dias.
Ao contrário de todos os outros princepes e princesas, eu e aquele ser castanho-mel (o inseparável Amiguinho) abandonamos a Mamã, o berço e o balão e avançamos pelos corredores soturnos daquele castelo até um lugar quentinho, recheado de outros princepes e princesas quase iguais a mim. (A crónica do meu dia-a-dia neste lugar encantado merece um destaque especial e fica para outro dia.)
Onde estava a minha Mamã? Sozinha. Sozinha com um berço vazio do lado ainda com os lençóis quentes, voltados para trás como que à espera que eu voltasse. Sozinha com um balão azul atado ao berço por um imóvel fio de seda. Sozinha com o choro vigoroso dos princepes e princesas das Mamãs das camas do lado. 
E a Mamã assustada, o berço que arrefeceu e o balão imóvel, esperaram toda a noite que eu voltasse para este reino que era o meu. E, assim foi nos três dias seguintes."


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Era uma vez...


Era uma vez, era uma vez uma barriga que mais parecia um balão, daqueles balões rechonchudos que nos dão vontade de apertar com as pontas dos dedos quase até estoirar, mas sem que estourem...Era uma vez, dois pés que mais pareciam duas bolinhas com uns palitinhos a espreitarem na ponta.... Era uma vez uma Mamã de um quase uma vez bebé...
Sem saber como fazer, empurrei mil e uma vezes a almofada para sentir se me ouviam...Até que, notei um rebuliço, parece que já tinham percebido! Mal sabia eu, que confusão aí vinha, por isso, vou deixar para outro dia, a história que vai do Era uma vez um quase bébé, para contar a história do Era uma vez o bébé, que sou eu, até porque, é uma bonita, mas cansativa história.
Bom dia! Cheguei, mas que grande balbúrdia....Não sei como faço...Cortaram-me a minha amiga fitinha e só me deixaram ficar um bocadinho agarrado ao buraquinho do meu balão...Parem de me enfiar coisas no nariz... Não quero água nos olhos! Que caras tão esquisitas a olharem para mim, e risadas absurdas bem ao fundo! Quero voltar ao aconchego da minha almofadinha e conversar com a minha fitinha, por isso, vou gritar bem alto! Mas, ninguém se comoveu com tanta gritaria e há que enfeitar-me com um traje todo catita, que às vezes picava-me aqui e acolá...Enfim, o ser um Era uma vez um bebé não é nada fácil....
Era uma vez a Mãe....aquela da barriga-balão e pés-bolinha, é linda e que bem cheira!
Cansada e de batinha azul meio-vestida, esperava-me derretida, como uma bola de gelado de amoras ao sol, sorrindo e com um olhar tão terno que nunca antes tinha visto, mas que tantas vezes senti, lá dentro do balão...
E, era uma vez o Pai... aquele senhor, que me falava muitas vezes ao ouvido para dentro do balão, cujas mãos quentinhas, como que aquecidas na lareira, me abraçou...
E, era uma vez, muitos rostos bizarros, que vinham e iam e faziam “brrs” com vozes de trompete desafinado....
E, por entre colos fininhos e colos mais gordos, até quase escangalhados como um bolo-rei, já quase estava habituado, até que um fatídico dia chegou: ir ao Doutor!
Que sitio tão estranho! Senhoras todas diferentes, todas mais ou menos torcidas a carregar um mundinho de bebé dentro de sacolas, mas todas orgulhosas a  amparar os seus principezinhos, porque afinal Eram todas uma vez uma Mãe. Foi aí que reparei que afinal nem todos eram principezinhos, já que neste sitio existiam uns principezinhos que se vestiam de princesas, talvez porque até o fossem. Porque usavam una pequenos trapinhos abertos em baixo, da cor das flores e outros, usavam umas coisas de encaixar as pernas, da cor do céu?
O príncipe que estava ao meu lado, naquela sala pincelada de amarelo, habituado aquelas andanças, já me tinha balbuciado que o senhor que estava sentado dentro da porta que se abrira, e que a Mãe, tanto gostava, tirava-nos os trajes de príncipes e princesas e tinha uma coisa muito fria para espreitar para dentro de nós. Que medo!
A antiga barriga de balão e pés de bolinha, levantou-se de rompante e espreitou para saber se podíamos entrar. Nem queria olhar para  aquele senhor, não fosse ele tentar-se a fazer o mesmo que fazia ao príncipe trajado cor-de-ervilha e de olhos esbugalhados que estava ao meu lado, daí que, resolvi olhar em redor. Parecia o meu reino lá de casa, pintalgado de bolinhas nas paredes, aparecendo aqui e acolá uns amiguinhos iguais aos que tinha no meu reino.
Não tinha conseguido escapar, ia ser mais uma vítima do Doutor, cujo rosto tinha tentado evitar! Tive mesmo que olhar para ele: parecia uma torre, mas sem ervinhas no topo, que talvez fossem aquelas que tinham fugido para debaixo do nariz e  quase caiam na boca; deitado à frente dos olhos tinha duas caixinhas transparentes que não me parecia que o deixassem espreitar cá para dentro; à volta do pescoço tinha uma fitinha tão parecida com a que me tinham tirado quando deixei de ser Era quase uma vez; e, umas mãos tremendamente grandes, quentes mas não o quente do aquecidas à lareira como o Era uma vez o Pai. Foi nesse momento que me lembrei que se gritasse bem alto, talvez escapasse à espreitadela.
Fez-me uma festinha na cabeça e parou bem lá no topo, para ver não sei bem o que. Continuou pela ponte que junta a cabeça ao sitio onde fica o “tum-tum”, que mais parece um relógio que corre quando fico feliz e que também fica preguiçoso quando vou dormir, e por aí abaixo. Até gostei dessa parte, mas não desisti de resistir à espreitadela, e nem por sombras baixei o volume do meu não à tortura do Doutor.
Mas quando a fitinha, que afinal não era nada parecida com a minha, se encostou, descobri que afinal tenho mais ervinhas pelo corpo todo, que logo se levantaram como que a gritar. Estava a tentar espreitar o “tum-tum” que nesse momento “tumtunzava” como poucas vezes, e depois foi espreitar com a fitinha feia o sitio onde nasce a comichão que dá a tosse. E, parou! Ao tirar a fitinha quase pensei que me tinha abandonado por ser o mais resistente dos príncipes, mas não, afinal o Doutor que parecia uma torre, não estava satisfeito. O meu balão foi amassado, talvez porque ele queria saber o que tinha comido nesse dia, sorriu ao ver que eu já tinha perdido a minha amiga fitinha e até descobri, que nele tocava uma música catita com os dedos.
Espreitou as mãos e os pés e aquelas coisinhas que são como conchinhas transparentes nas pontas. E, chegou o momento do tapa-cocos e chichis ser desapertado, pois eis que resolvi fazer uma habilidade, que sei fazer, mas não sei quem me ensinou. Ficou tudo quentinho, mas o Doutor continuou e  inspeccionou com cautela os meus furinhos mágicos.
Mais animado com tal proeza, e cansado de resistir, passei para uma nova caminha, mexerica como tudo, para onde os olhos curiosos do Doutor e da Mãe se deleitavam.
Depois veio um pau muito comprido, onde me encostaram tão esticadinho como uma vagem de feijão e uma régua mole que mais parecia uma cobrinha, que me colocaram na cabeça. Mal sabia eu que o pior estava para vir!
Um boneco-anão com luzinhas de Natal veio aqui espreitar, dos lados da cabeça, porque pelos vistos tenho aí uns furinhos, que ainda não sabia que os tinha. E, não contente, também queria comer, e pediu ajuda a uma bruxa magrinha, de sabor azedo, para vir espreitar o meu leitinho na boca, que  para sua desilusão, já lá não estava.
E, o Doutor fugiu...Tinha finalmente acabado e estava satisfeito com a espreitadela, porque a Mãe começou a pôr o príncipe com ar e traje de príncipe outra vez.
O doutor estava feliz com a espreitadela e gatafunhava no meu primeiro caderno, aquele que me tinham dado no sitio onde passei a ser Era uma vez um bébé. A Mãe aconchegava o príncipe, tão feliz com a espreitadela. E, o príncipe, que sou eu, estava feliz por ter culminado em bem aquela sessão de quase tortura do Doutor.
E, foi assim que descobri, que ir ao Doutor, como todos os outros príncipes e princesas, espreitar o “tum-tum”, descobrir que tenho mais ervinhas no meu corpo e até mostrar habilidades fantásticas, faz com que no meu Reino tudo fique feliz.
Acho que da próxima já não vou ter medo......


quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Crónicas de estetoscópio e biberão

Nasceu... uma vontade imensa de escrever despretensiosamente e com a maior transparência do mundo as crónicas de uma menina que sempre quis ser Mãe e que sempre quis ser Pediatra... E foi, e é... Mãe que também é Pediatra e Pediatra que também é Mãe...Indissociáveis!
Mais difícil?
Não sei...Talvez ser Mãe que também é Pediatra...
Depois explico porquê...