Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe



Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe


terça-feira, 15 de outubro de 2013

By P.C. ... Irresistivel

Irresistivelmente bem escrito, delicioso como um robalo acabado de pescar e verdadeiramente maravilhoso. Palavras com perfume a maresia, puras, cruas e que espelham tal e qual o que eu sinto. Amei e deixo-vos morder o isco. Cá vai...
By Pedro Cruz
"Acho que nunca na vida conseguiria exercer outra profissão que não a de Médico. Mais, acho que não seria capaz de ter outra especialidade que não a Anestesiologia. Não seria feliz noutra qualquer actividade profissional... ou talvez o fosse como o meu homónimo (Simão) Pedro – o apóstolo Pescador... prefiro continuar a pescar ludicamente do que comprová-lo. Prefiro continuar a ser Anestesista e a fazer os possíveis por ser um bom profissional, porque acima de tudo amo o que faço – tenho esse previlégio. Se por um qualquer motivo fosse obrigado a exercer outra actividade fá-lo-ia e estou convicto que nunca deixaria de ter brio na mesma. Aliás, todos aqueles que, gostando ou não do que fazem, exercem as suas funções com brio, têm o meu total respeito e admiração.
Não acredito em vocações e penso que todos nós somos complexos o suficiente para nos adaptarmos a diferentes situações. Tenho a convicção profunda que em situações limite, o nosso instinto (animal) de sobrevivência se sobrepõe à razão. Numa hipérbole, não me custa admitir que seria capaz de roubar e matar se não tivesse pão para a boca das minhas filhas por exemplo.
Não sou mais nem menos que o comum mortal e é assim que gosto que me vejam – um entre muitos, mas único! Gosto de ser respeitado como sou, pela minha genuinidade, com todos os meus (muitos) defeitos e com as minhas virtudes. Tento ser respeitador também, mas a minha ambição limita-se a pretender ser um bom exemplo para as minhas filhas, para mais ninguém! Espero incutir-lhes os mesmos princípios que a minha Família me transmitiu. Não sou nenhum santinho, nem dono da verdade, farto-me de errar infelizmente! Só desejo que a minha auto-crítica nunca me deixe só e que humildemente continue a ter a “desculpa” na ponta da língua.
Nos últimos tempos tenho sido confrontado com duras realidades. Pelo menos para mim tem sido difícil de viver e conviver com os atropelos que me rodeiam quase diariamente. Estudei na Faculdade com média de acesso mais alta dos últimos anos (embora tenha orgulhosamente entrado na mesma com Estatuto de Atleta de Alta Competição de Voleibol e com média “apenas” de 16 valores) mas sou obrigado a admitir que dos maiores ensinamentos que guardo para a vida me foram dados por uma senhora que hoje tem 91 anos, a minha Avó Laura, que tem a quarta classe! Nestes dias conturbados de que falo, esses ensinamentos têm sido o meu escudo. Mas não só... Outra pessoa que muito marcou e marca indelevelmente a minha maneira de ser, além dos meus queridos Pais, é o Dr. Paulo Ramos, meu ex-orientador de formação durante a especialização em Anestesiologia. Aprendi muito com ele, mas o que não vinha nos livros foi o que mais me marcou, especialmente uma frase: “O importante é um gajo chegar ao fim do dia, ir fazer a barba e olhar no espelho e ter orgulho no que vê”! Continuo a tê-lo! Por isso mesmo, apesar de me sentir cada vez mais tolerante para bocas, bitaites, piropos, conversas de corredor, etc... sinto uma obrigação crescente em lutar contra os atropelos que referi anteriormente.
O que mais me incomoda nestes atropelos é o sentimento de impunidade de quem destrata os outros! Na área em que trabalho, há muito que sou defensor de testes psicotécnicos para selecção de futuros alunos de Medicina. Na minha óptica são tão ou mais importantes do que as notas! Fico indignado, como é possível que pessoas que vão trabalhar com e para outras pessoas sejam avaliadas apenas pelas suas notas académicas? Sou da opinião que, por exemplo, um bom dactilógrafo será um excelente profissional a partir do momento em que escreva rapidamente e sem erros ortográficos; no caso isso será mais do que suficiente! Já para um profissional que trabalha integrado em equipas formadas por pessoas com diferentes competências e que trabalha para pessoas doentes, as relações inter-pessoais são, quanto a mim, a pedra basilar! A preparação teórica sem dúvida que é muitíssimo importante, mas não mais que a capacidade de nos relacionarmos com os outros – profissionais e doentes.
Egoísticamente, em última instância, também eu estarei um dia (que espero tarde) na posição de doente e quero ser bem tratado! Aliás, é a única certeza que todos temos – um dia seremos nós o doente! Por isso mesmo temos de ter uma atitude mais altruísta sempre que directa ou indirectamente presenciamos atropelos. Ao sermos indiferentes estamos a ser coniventes e a fomentar que eles se perpetuem...
Para terminar, porque não gosto de tomar o todo pela parte e porque sempre que se generaliza se está a ser injusto para alguém, quero deixar um abraço sincero para o meu Amigo Sérgio Silva, um exemplo como Amigo e como Profissional de Saúde! Hoje, ao dirigir-me ao hospital de S. João, presenciei um seu gesto de carinho para com uma senhora que se encontrava no Serviço de Urgência que me fez chorar como uma criança. No caso, o marido, um doente terminal, estaria a aguardar pela sua vez. A senhora, que conhecia o meu Amigo de outros recursos ao Serviço de Urgência, interrompeu a nossa conversa para poder falar com aquele Médico afável que já conhecia. Engoli as palavras e só consegui por segundos constatar o carinho com que o Sérgio tratou a senhora mesmo sem estar de Urgência... provavelmente, tal como quem estava de serviço, pouco mais poderia fazer pelo doente, mas os minutos que dedicou áquela senhora que também sofria pela doença do marido e o abraço que lhe deu foram o conforto que procurava! Estes gestos não vêm nos livros! Virei costas para chorar em paz... mas chorei de alegria! Obrigado Sérgio!
Pedro Cruz, o futuro doente (a única certeza que tenho na vida)."

Perfil

Perfil de fazer crescer água na boca, bochechas almofadadas, cabelos enroscados e turbulentos, barriga-balão saliente a empurrar o mundo, pele-de-seda. Perfil de quem não quer saber se têm as mãos sujas, as unhas imaculadas, a camisola pintada de aguarela. Perfil com perfume a merenda da escola. Perfil de risada pura. Perfil de menino que caminha num trilho retorcido de sacola às costas, indiferente aos porquês e não se faz. Perfil de um puto que segreda Bom dia ao senhor muito-muito-velho que ninguém vê e que está à saída da escola.  Perfil de um R, que sem medo vai pé-ante-pé pelo trilho de giz desenhado no chão da escola...

R. & o trilho

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Meninos & Mães

Meninos lábios-cor-de-amora, roxo-púrpura, que acenam um sim desesperado e buscam a mão das Mães por entre fios e gritos sonoros das maquinarias. Meninos lábios-cor-de-amora que deixam cair as pálpebras na dança de um tórax retalhado e irrequieto que teima em não parar de respirar. Meninos lábios-cor-de-amora com olhos pretos de medo que teimam em falar. Meninos com histórias que vão e vêm muitas vezes. Meninos filhos de Mães que cortam as lágrimas de lábios cerrados e por entre sussurros segredados soltam um "...mais uma etapa...Tu és forte...". Meninos filhos de Mães com medo rodeados de pessoas estranhas vestidas de anjo que agarram com alma a vida por um fio...
Agradeço ser uma dessas pessoas. Agradeço agarrar o fio com as unhas pintadas de branco. Agradeço que me deixem tentar. Agradeço acorrentar a água nos olhos ao ouvir o sussurro segredado. Agradeço que sobrevivas...

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O que não adoro

Não adoro sushi desenhado quase arquitectonicamente. Não adoro ser organizada. Não adoro figos que pingam açúcar. Não adoro cor-de-laranja. Não adoro bacalhau com batatas num dia qualquer. Não adoro a Páscoa dos ovos de chocolate que fazem borbulhas. Não adoro neve sem chá quente a fumegar. Não adoro, mas detesto, pessoas que se esquecem dos outros. Detesto ter as pálpebras dormentes e ninguém dar conta. Detesto ser da Terra do Nada, ou antes, ser da Terra do Tudo, mas que façam o Tudo parecer um Nada. Detesto que me vendem os olhos, me ponham a mão na boca e me anestesiem a alma. Detesto não falar o que penso. Detesto não poder fazê-lo. Detesto pessoas-queixinhas, pessoas-jornal, pessoas-arrogantes-novas-ricas, pessoas-deprimidas sem porquê, pessoas-petulantes, pessoas que vão sempre ao mesmo restaurante, pessoas que habitam num conforto-cego, pessoas que não sabem dar abraços de olhos fechados, pessoas que perguntam às pessoas erradas.
Quase detesto esta crónica porque é tão crua e escura... mas adoro tê-la escrito num ápice e não ser interminável!

Noites de pestanas dormentes em que ninguém dá conta

Descoberta

Adoro pessoas-sem-umbigo. Adoro um café que pinga de uma máquina de um café qualquer. Adoro olhos preguiçosos que fazem as pestanas beijarem-se interminavelmente. Adoro o cheiro a terra acabada de tomar um banho de chuva. Adoro botas de salto agulha que fazem vertiginosamente crescer uns dez centímetros. Adoro o barulho diluído da saída da escola. Adoro um pedaço de braço que foi feito para mim. Adoro os caminhos  voluptuosos que serpenteiam o Douro. Adoro sorrisos da alma. Adoro um crepe embrulhado em rodelas de banana e chocolate quente a borbulhar. Adoro ar fresco no rosto que invade a janela do carro. Adoro o escarlate-quente do natal. Adoro passeios de olhos vendados, taquicardizantes. Adoro bocados de tempo em que não se fica mudo. Adoro pessoas que tem malagueta-doce na ponta da língua. Adoro ouvir "minha Mãe". Adoro o nome Rita. Afinal, descobri que adoro planos, programas, itinerários... dos que fazem a alma saltar de dentro, dos que esquecem o Mundo, dos que pretensiosamente só querer ser felizes...