Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe



Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe


sábado, 30 de maio de 2015

Nora à vista....

Há uns dias, perguntaram-me se eu pensava como seria o R quando crescesse. Só depois já ao volante veloz, percebi que tinha fugido à pergunta. Numa resposta quase a roçar a esquizofrenia disse :" O R tem uma A e diz que se vai casar com ela." É verdade, o R tem uma A de abraço franzino, fácil e meigo. Sorriso aberto, vazio de dentes tão próprio da idade, caminhar desastrado e cabelo maroto. O R tem uma A para a qual quis fazer muffins de chocolate. O R tem uma A que gosta de ele próprio imitar. Os Rs têm As! É isto que interessa agora... 
O que interessa como será quando crescer? Chamem-me o que quiserem ( já o fizeram algumas vezes), mas o que mais desejo é o agora. O agora vivido à maneira dele. O depois será como o estamos a construir, estando por perto, mas sem querer pensar muito nisso. Pode ser?




Cidadãos de segunda

Os Rs deste mundo são tratados como cidadãos de segunda. Irreconhecidos, apontados, alvos fáceis, esquecidos, gozados. Começamos pelas figuras ilustres que administram este país e terminamos no vizinho do lado. Os passeios sem rampa, os escassos lugares de estacionamento prioritário, as escolas selectivas dominadas por pessoazinhas (dizem-se cidadãos de primeira e discursam com tal snobismo como se tivessem uma batata quente na boca) ainda mais selectivas. Mas, dou de barato! Já aprendi a reduzir todos os pequenos grandes esquecimentos que os perseguem que todos podem reparar (se quiserem, claro). O que realmente me contorce a alma num arrepio visceral de raiva, são os olhares incomodados de quem está mesmo ao lado, o carro do vizinho do 2A estacionado no lugar prioritário (que de deficiente, só mesmo a parvoíce), os adultos que se riem das palmas que saem estrondosas das mãos em concha ou que deitam olhares reprovaríeis de soslaio, as consultas hospitalares em dias seguidos, sem maleabilidade para ajustar.  E os testemunhos dos pais...Ouço cada testemunho, cada palavra como se fosse minha. E, ouço frases, avaliações e deduções de colegas que dão vontade de chorar, tamanha a pequenez da alma. Caros colegas, se fossem vossos filhos (sem nunca lhe desejar tal , aos vossos filhos, claro) gostaria de saber como fariam. Não gosto. Não gosto mesmo que os tratem como cidadãos de segunda e não gosto de saber e sentir que são muitas vezes os da minha classe a fazê-lo. Esses pequenos grandes cidadãos, não de segunda, mas também não de primeira, também têm uma A namorada para dar beijinhos às escondidas, também choram quando caem, também podem ter sono e não querer estar sempre a dar provas. Deixem-nos ser felizes, não em primeira, não em segunda, mas no palco do mundo! (Não nos esqueçamos da rampa para quem não pode subir escadas...)

segunda-feira, 25 de maio de 2015

À moda do Porto

Pessoas à moda do Porto. Sou uma pessoa à moda do Porto e escrevo-o com pompa e circunstância. Amo os recantos sujos e as ruas sombrias que escorregam até à Ribeira. Não dispenso a pesagem na balança velha da estação de S. Bento que vomita uns cartões com a data, a hora, o peso e uma frase de quase sina de cigana. Gosto de entrar nas livrarias num momento revivalista de adolescente. Adoro o Piolho e o perfume a tertúlia académica que emana. As casas, desalinhadas e minúsculas, que escondem jardins desajeitados do lado de trás. Gosto de chás com bolos de avó na Rota dos chás. Gosto de recantos com tascas perdidas. Gosto de ruas empedradas alheias aos saltos-agulha. Gosto de esplanadas cheias de gente. Gosto das tatuagens em muros baldios aqui e acolá. Gosto dos barcos que dançam entre as pontes. Gosto da miscelânea do mundo que chega num boom turístico em busca de um novo destino da moda. Gosto das francesinhas dos tascos desconhecidos. Gosto das esplanadas da Foz. Gosto da vida agitada das gentes. Gosto das peixeiras da Afurada sentadas nos bancos da porta de casa. 
Gosto do Porto e arredores, dos pormenores que não constam nas revistas que lhe trouxeram o boom, do sol envergonhado que o beija mesmo de Verão.
Os 5 imperdíveis do Porto:
1. Calçar sabrinas e fazer as ruas a pé, mesmo os becos, mais escondidos;
2. Um chá de fim de tarde com bolo de avó na Rota dos Chás;
3. Entrar na Estação de S. Bento com os olhos bem voltados para o alto e parar a olhar o tecto, lá dentro, pesar na máquina velha dos cartões com dizeres adivinhatórios;
4. Uma bela de uma francezinha na Cervejaria Brazão e, se a barriga aguentar, subir até à Leitaria da Quinta do Paço e deliciar-se com eclair clássico e um café;
5. A Rua das Flores recheada de vida e de novidades.

Da máquina velha da Estação de S. Bento





quarta-feira, 20 de maio de 2015

Lembras-te?

Sobra-me uma mão cheia de destreza, um cálculo mental absurdamente veloz e o coração cheio de histórias, daquelas histórias a que roubo o "h" e troco o "i" por um "e", contrariando qualquer parvo acordo ortográfico.
Uma estória que me enche a alma. Sábado de Maio. Turno de 24 horas da M. Telefone estridente que toca de um hospital de lá longe depois das serras. Toca o meu logo de seguida. Vens comigo?, diz a M. Saio disparada. Estaciono apressada e visto uma bata branca. Arrancamos. Curva e contracurva no meio da serra. Contas, fármacos e o desconhecido à espera. Invadimos o hospital com uma maca recheada de aparelhos enormes e violentamente assustadores, eu, a M, a enfermeira F e o nosso TAE.
Serviço de Pediatria? Levam-nos rápido ao elevador. Entramos num corredor de paredes pintadas e prontamente conduzem-nos ao quarto de isolamento. Quarto em modo penumbra, coberto até aos olhos, um puto franzino, entorpecido, com bigodes nasais a verter oxigénio. Num gesto quase agressivo, levantamos o lençol e levamo-lo até uma sala que rapidamente se transformou em sala de emergência/bloco operatório. Tubo endotraqueal, duas intraosseas, um cateter venoso central, manitol, NaCl a 3%, fármacos a correr na veia, lanterna ansiosa a espreitar pupilas. Tudo, fizemos absolutamente tudo o que vinha e não vinha nos mais avançados livros de emergência pediátrica. Passavam 3 horas desde que havíamos chegado e podíamos arrancar de regresso ao hospital-mãe. Sabíamos que estava melhor, que estava vivo, mas suspeitávamos que mudasse no longo caminho. Esperava por nós na saída do hospital, um arsenal de água e bolachas para a equipa que o veio buscar e que no meio do nada montou um serviço de emergência de ponta. Rimo-nos nesse momento e agradecemos a merenda. Já de madrugada, chegamos ao Porto e garanto que nunca na minha vida ver a entrada do hospital-mãe foi tão gratificante quanto dessa vez. Chegamos com o puto franzino. Não o perdemos pelo caminho. Abraçamo-nos, eu e a M, num abraço tão longo, que durou milissegundos no relógio, mas tatuou a minha vida... E, o puto franzino foi para a Unidade que o esperava, duvidosa que chegasse. E, para nós, o puto franzino passou a ser o motivo pelo qual era bom ter frio na barriga e ir fora de horário, salvar vidas. Para o puto franzino, que ficou maravilhosamente bem, nós seremos sempre as médicas novinhas, incógnitas, que se abraçaram que nem umas doidas à chegada ao hospital.
E, é só isto... 


terça-feira, 12 de maio de 2015

Crónicas de estetoscópio e biberão: Médica da vida real

Crónicas de estetoscópio e biberão: Médica da vida real: Voltamos... Renovados, vigorosos, sem olheiras cor-de-carvão. Optamos pelo plano B da vida das pessoas-comuns. Optamos pelas noites de ca...

Médica da vida real

Voltamos...
Renovados, vigorosos, sem olheiras cor-de-carvão. Optamos pelo plano B da vida das pessoas-comuns. Optamos pelas noites de cama real, de almofadas grandes, brancas e com perfume a jasmim.
Optamos pelos sonos de horas não interrompidas. Optamos pelo sábado e domingo em que o centro comercial apinha-se de gente às cores. Optamos pelos meninos sãos ou pouco doentes. Optamos pela vida real, sem histórias de quase-ficção para contar...
Deixei para trás um projeto construído a quatro e mais algumas dezenas de mãos. Fugi das olheiras, do colchão empilhado no meio de uma sala indigna. Fugi do ser uma interna para sempre. Abandonei as paredes cinzentas majestosas do hospital que me fez crescer, mas que também me esmagou o caminho. Perdi os meninos-grão-de-arroz, os meninos de coração apressado, os meninos de vidas vaporosas e fugidias. Larguei o pijama branco-sujo que enchia de cor com toucas floridas e casacos despropositados. Cortei a ânsia do telefone que tocava, o barulho infernal do helicóptero. Esqueci como se dão más noticias (muito más notícias).
E, agora sou assim: salto agulha, bronzeada, diurna. Sorrio livre, sem medos. Dou boas notícias e algumas menos boas (mas nem por isso más). Levo desenhos de cor no bolso da bata justa imaculadamente branca. Não me esqueço de beber 1 litro de água por dia porque está sentada ao meu lado. Sou assim uma pediatra de um hospital privado.
Como disse, voltamos: eu e as palavras, mais doces, mais ternas, mais fáceis, e talvez por isso tão difíceis de retornar a escrever. Falta-me o nervoso miudinho que me fazia perder anos de vida. Falta-me os abraços demorados no fim do transporte. Falta-me as mãos de uma mãe qualquer agarradas às luvas que tiveram a vida do seu filho. Falta-me as respirações rápidas e ofegantes, os cantares dos monitores, as reuniões de passagem de doentes carregadas de doses e planos, as noites não dormidas, as sapatilhas calçadas 24 horas consecutivas. Até me falta, o raio da máquina de chocolates e afins do piso 01. É um facto, falta-me essa vida que me enchia a alma. Ao olhar para o texto escrito, só parecia maravilhoso o ser médica de um hospital público, universitário, pioneira de um serviço pediátrico. É bom e faz-nos felizes, mas é uma felicidade fugaz, que enche a alma e por instantes se evapora. Não queria isso para mim!
Pessoas dos hospitais que nos fazem encher a alma, por favor, cuidem dos vossas pessoas cuja alma é fácil de encher! Se não cuidarem, elas vão-se embora, porque ao contrário do que pensam, ainda há muitas alternativas...


A quem me fez crescer, ser uma melhor mulher, pediatra e amiga!
Ao TIP e a todos os que o viveram: uma vez TIP, TIP para sempre!