Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe



Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe


quarta-feira, 20 de maio de 2015

Lembras-te?

Sobra-me uma mão cheia de destreza, um cálculo mental absurdamente veloz e o coração cheio de histórias, daquelas histórias a que roubo o "h" e troco o "i" por um "e", contrariando qualquer parvo acordo ortográfico.
Uma estória que me enche a alma. Sábado de Maio. Turno de 24 horas da M. Telefone estridente que toca de um hospital de lá longe depois das serras. Toca o meu logo de seguida. Vens comigo?, diz a M. Saio disparada. Estaciono apressada e visto uma bata branca. Arrancamos. Curva e contracurva no meio da serra. Contas, fármacos e o desconhecido à espera. Invadimos o hospital com uma maca recheada de aparelhos enormes e violentamente assustadores, eu, a M, a enfermeira F e o nosso TAE.
Serviço de Pediatria? Levam-nos rápido ao elevador. Entramos num corredor de paredes pintadas e prontamente conduzem-nos ao quarto de isolamento. Quarto em modo penumbra, coberto até aos olhos, um puto franzino, entorpecido, com bigodes nasais a verter oxigénio. Num gesto quase agressivo, levantamos o lençol e levamo-lo até uma sala que rapidamente se transformou em sala de emergência/bloco operatório. Tubo endotraqueal, duas intraosseas, um cateter venoso central, manitol, NaCl a 3%, fármacos a correr na veia, lanterna ansiosa a espreitar pupilas. Tudo, fizemos absolutamente tudo o que vinha e não vinha nos mais avançados livros de emergência pediátrica. Passavam 3 horas desde que havíamos chegado e podíamos arrancar de regresso ao hospital-mãe. Sabíamos que estava melhor, que estava vivo, mas suspeitávamos que mudasse no longo caminho. Esperava por nós na saída do hospital, um arsenal de água e bolachas para a equipa que o veio buscar e que no meio do nada montou um serviço de emergência de ponta. Rimo-nos nesse momento e agradecemos a merenda. Já de madrugada, chegamos ao Porto e garanto que nunca na minha vida ver a entrada do hospital-mãe foi tão gratificante quanto dessa vez. Chegamos com o puto franzino. Não o perdemos pelo caminho. Abraçamo-nos, eu e a M, num abraço tão longo, que durou milissegundos no relógio, mas tatuou a minha vida... E, o puto franzino foi para a Unidade que o esperava, duvidosa que chegasse. E, para nós, o puto franzino passou a ser o motivo pelo qual era bom ter frio na barriga e ir fora de horário, salvar vidas. Para o puto franzino, que ficou maravilhosamente bem, nós seremos sempre as médicas novinhas, incógnitas, que se abraçaram que nem umas doidas à chegada ao hospital.
E, é só isto... 


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