Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe



Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe


segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Momentos

A vida passa-se em momentos, que raramente se esquecem ou que se carimbam num pedaço de nós. E, são esses momentos que nos fazem rir como rimos, que nos fazem viver como vivemos, que nos moldam como plasticina. 
Reparo em momentos, sempre reparei. 
Os bons e os maus. 
Os mais velozes, fugazes, de segundos e os que ficam entalados na garganta e são momentos que duram muito tempo (deixando de o ser). 
O momento em que concorri a faculdade, o momento em que entrei para o exame de especialidade, o momento em que fiz a amniocentese, o momento em que o R foi para casa a primeira vez, o momento em que vimos a nossa casa e soubemos que seria a nossa casa, o momento em que te abracei no estacionamento do hospital, o momento em que me pediste em casamento, em frente ao Atlas e debaixo de um perfume misturado de incenso, especiarias e música da cidade velha, o momento em que a S nasceu, perfeita e saudável, o momento em que rescindi o contrato no meu hospital de sempre, o momento em que fiz o primeiro transporte com a M, o momento em que casamos só porque sim e em segredo, o momento em que o R leu o piso de nossa casa, o momento em que a M mamou outra vez. Momentos bons estes, que dão arrepio na alma e fazem-me percorrer com todos os sentidos cada pedaço desses tempos. 
O momento em que me bateram no carro a primeira vez, o momento em que vi a primeira criança morrer na sala de emergência, o momento em que ouvi boatos de mim mesma, o momento em que o berço ficou vazio ao meu lado, o momento em que sozinha me disseram o mais temível dos diagnósticos do R, o momento em que tentam abortar a minha maternidade com dizeres, pareceres e inconsciências hipócritas, o momento em que tenho que deixar o pensamento voar e olhar-me do lado de fora como se se tratasse de uma experiência transcendental para ouvir incólume e serena barbaridades de quem não sabe mais do que míseros anos de vida, o momento em que fiquei doente (e que já passou), o momento em que sou mais forte que o aço. Momentos maus estes, compridos. Mas, curiosamente são estes que sei que levam para além daquilo que acho que consigo, que me tornam mais forte e que me elevam a outro nível. Construo-me em cima das agressões alheias e isso é bom. 
Guardo-os em mim e cada pedaço do que sou, traz consigo um desses pedacinhos de tempo.


Momento a três



sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Relato do início de um ano lectivo

Relato de um início de ano lectivo. De um início de um ano lectivo diferente daquele que vejo nos retratos do facebook e nos posts da maioria das minhas amigas e conhecidas. É de uma amiga longínqua no espaço físico, mas tão chegada no coração. Escreve-me pela manhã de hoje, imagino que com o nervosismo que tão bem reconheço nas pontas dos dedos, porque sabe que o sinto com um laivo de dor na alma, uma dor que já trato por tu. 
Pedi-lhe para o tornar público. Aceitou.


"A semana passada (início de ano letivo) a diretora do colégio apanhou-me a ir buscar os meninos e pediu para falar comigo. O que teria para me dizer? No período entre as 13 e as 14 horas não tinham ONDE, nem COM QUEM o deixar ficar. Isto porque após o almoço ele fica mais agitado e, na sala, a educadora precisava de trabalhar com o grupo e não estava a ser possível. No ano passado, entre 13 e as 15 horas, ele tinha o apoio diário com uma auxiliar que agora estava a ser necessária no recreio e não poderia ficar com ele durante duas horas. Então falamos de várias soluções, nomeadamente a de eu ir ao colégio. Essa proposta foi de imediato contraposta com a de sair com ele do colégio essas duas horas e voltar posteriormente. Eu disse logo que essa opção nem pensar. Porque numa criança neurotipica já é difícil aceitar que a mãe o leve de novo para a escola quanto mais numa criança autista.Depois foi sugerido que as nossas terapeutas fossem ao colégio naquele período mas seria apenas uma vez por semana e não resolveria a situação. Outra alternativa era o apoio de uma professora de educação especial do colégio, obviamente paga como extra. 3 vezes por semana. Ou seja, ficariam ainda a faltar 2 vezes por semana, portanto nem isso seria a solução perfeita. Nos outros dois dias o que lhe faziam? Punham-o a um canto? Enfim. Depois desta conversa toda digerida começamos a ler nas entrelinhas e o que quiseram dizer foi: o seu filho financeiramente não é atrativo para o colégio porque como empresa não podemos colocar recursos apenas para ele. Portanto, por favor, retirem-se. (Não disseram mas de certo é o que pensam...)Isto tudo depois do ano letivo começar. Foi muito duro ouvir isto assim. Nu e cru. Não temos onde nem com quem ele fique das 13 às 14h. E então a família que se arranje. Que encontre soluções. Porque as que temos nem sequer asseguram os dias todos da semana. Eu fui uma defensora do colégio. E não me esqueço o tremendo esforço e o empenho que tiveram para com ele. Agradeço do fundo do coração o trabalho feito com ele. Mas não ao colégio. Agradeço à auxiliar que esteve permanentemente com ele e o ajudou tanto tanto no seu desenvolvimento. Ontem já reunimos de novo e a nossa decisão não podia ser outra senão sair.Hoje é o último dia dos meninos aqui. Foi duro, muito duro. Basta que tenhamos filhos com necessidades diferentes e ficamos muito mais sensíveis. Fui mãe há pouco tempo. Noites dormidas é como sabes. E, de repente sou apanhada (porque fui mesmo apanhada, nem uma reunião com o pai e a mãe teve a decência de marcar) com este valente murro no estômago... Foi vergonhoso a forma como trataram da situação por 1h diária. E a forma como me comunicaram. Mas já temos colégio novo. Com um método de ensino diferente. Quinta pedagógica e horta. Enfim. Vamos ver como corre. Começam na próxima segunda-feira. E, é isto o turbilhão da minha vida!"

Sim, é o turbilhão das nossas vidas... Sei-o de cor e salteado. O "não temos solução, o não há alternativas" é uma constante. Empurram-nos assim, desamparando e não olhando a meios.Tão esquecidos e tão abandonados. Quando ouço comentários de alguns Pais, penso para os meus botões, que não imaginam sequer a sorte que têm, em tudo ser mais fácil na normalidade. Ser um bocadinho desigual, é estar na beira do prato. Tentemos que assim não seja...
Estou contigo e, muito em breve seremos diamantes.





Saudade

Dizem que a saudade só existe em português. Não concordo. A saudade poderá ter outro nome qualquer mas é de todos, impalpável, inata. Eu sou toda cheia de saudades. No Verão, tenho saudades das camisolas de gola alta, de ver a chuva pingar no rio, do Natal e, no Inverno, tenho saudades do perfume a cocô do creme de praia e dos vestidos brancos, dos ombros decotados, do sol.  Nas férias, tenho saudades do rebuliço rotineiro dos dias de hospital e, no hospital, tenho saudades de não ouvir o alarme tocar logo pela manhã, que ainda é noite. Tenho saudades do cheiro a cadernos novos. Tenho saudades de ouvir música em silêncio. Tenho saudades de ir ao quarto-de-banho sem ouvir um  "oh mãe".  Tenho saudades das noites de hospital em que pedíamos cachorros ao lado de lá da rua e devorávamos por entre os doentes que não podiam esperar. Tenho saudades de mãos que afagam o rosto. Tenho saudades de estar grávida, porque já me esqueci dos últimos tempos difíceis que me avassalaram o corpo.
Mas tenho poucas saudades de gente. Tenho saudades da minha avó dos olhos cor de musgo (herdados pela Pedro, a MP que virou Pedro na boca de lábios finos da pequena S). Tenho saudades do meu avô austeramente lúcido, a dissertar todos os recantos do Mundo e as suas histórias da Índia. Tenho saudades da miúda índia, que perdi pelo caminho. Tenho saudades do P.-pai quando trabalha até tarde.  Tenho saudades tuas, meu R, quando vem a semana do Pai. 
Sou toda cheia de saudades...


quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Porto sentido

As gentes do Porto, os tripeiros, sem travão na língua, de saia rodada qual Mercado do Bolhão... As gentes do Porto estão habituadas a paredes de pedra cinzentas e casas encavalitadas a desenhar a Ribeira mais maravilhosa do Mundo. As gentes do Porto sabem acolher como ninguém, falam alto e pára na rua para indicar os caminhos. As gentes do Porto são genuínas. As gentes do Porto têm de aprender a misturar-se com as gentes de outros sítios, aprender a tolerar as filas de trânsito, a conviver com aquilo que o turismo arrasta consigo. 
Houve um boom turístico, que empurrou a cidade e as suas gentes para a frente... As ruas riem até altas horas, em cada recanto há um novo espaço, a cidade move-se como nunca. E, isso é bom, estranhamente bom. 
Por isso, gentes do Porto, continuem de sorriso aberto a quem vem para nos conhecer, mesmo que isso implique sair uma hora mais cedo para entrar no trabalho. Faz parte...








Torre dos Clérigos


TUK-TUK, ser turista na cidade




Cordoaria

O porto no punho









sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Nobres Bombeiros

Cliché ou não..., que se lixe, preciso fazê-lo. 
Obrigada aos Homens e Mulheres, anónimos vestidos de azul e vermelho, que correm, envergam mangueiras, cujos olhos resistem ao fumo, cuja respiração ofegante dá para perceber nas imagens, que se deitam cansados no chão, que têm filhos e Pai e Mãe. Obrigada pela luta desigual que têm travado nesta semana. 
Aos que conheci na minha caminhada enquanto Médica e Instrutora de Suporte de Vida. Aos que me entregaram crianças na Sala de Emergência ou na Urgência. Aos que trocavam palavras com a tripulação da ambulância TIP num hospital qualquer. As que nos ajudaram a levar a incubadora (pesada) do helicóptero para o Hospital de Bragança. Aos que nos deram água e bolachas depois de meras 3 horas de trabalho exaustivo num hospital escondido em Trás-os-Montes. E, aos que não conheci.
Aos que são Bombeiros...




O cansaço e as condições deploráveis que vos oferecem 
Dispensa palavras






A menina quer dançar?

Gostamos de dançar, desastradamente saltitar ao ritmo de músicas de crescidos. Gostamos de rir uma da outra quando os braços ganham movimentos quase que enlouquecidos. Gostamos de músicas que fazem abanar os ombros e balancear a cabeça. Gosto de dançar contigo no meu colo embrulhada a fazer o cabelo ainda de bebé dançar connosco. Já não dançamos há algum tempo, ora pela barriga voluptuosa da Mãe, ora porque danço no embalo da M, ora porque há vesículas que te salpicam... E, é isso que falta: d-a-n-ç-a-r.  Porque quem dança seus males espanta... Prometo, iremos dançar até cair para o lado, horas a fio, alheias aos sorrisos do Pai ou do R (que às vezes rendem-se e alinham também). Iremos dançar enroscadas, no meio da sala desarrumada, na areia da praia, no carro, onde nos apetecer, descalças, de salto alto, de pijama ou vestido de festa...
A primeira dança já escolhi... 

Esta música é uma viagem às festas da faculdade no Academia, aos amigos, à dança desnorteada no carro para tentar não adormecer depois de um turno. A menina quer dançar? Friday, i´m in love (clicar para ouvir)






sexta-feira, 15 de julho de 2016

White souls

Adoro branco!
Branco simples e nu ou branco pintado de azul-céu, de verde-alecrim, de amarelo-limão, de rosa pálido... Adoro vestidos caiados de branco que dançam com o vento, adoro casas lavadas de branco, adoro açúcar branco, adoro arroz branco feito pela minha mãe, adoro nuvens tímidas brancas, adoro lençóis brancos acabados de esticar, adoro bebés de branco vestidos, adoro areia branca inquieta, adoro toalhas felpudas brancas, adoro retratos a preto e branco, adoro suspiros, adoro príncipes e princesas trajados de branco, adoro cabelos brancos, adoro as asas brancas das borboletas...
Adoro pessoas de alma branca, não de um branco cru e simples, mas de um branco que se vai pintalgando de momentos, ideias, paixões, devaneios, dúvidas...
E, que raras que elas são!



Almas que se tocam

Primeira Roupa e Touca da MP da Casa Mãe: maravilhosamente tricotada
para almas tão brancas quanto o algodão doce

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Nobre Povo

Sou portuguesa de coração de filigrana, mas acresço a isso o espírito da cidade que me viu nascer. Não percebo nada de História, não tenho clube de eleição, não sei nomes da maioria dos jogadores, mas sei de pessoas. Sei de pessoas e de atitudes e confesso que, Paris romântico e o Rio Sena nunca me fascinaram, e nem de longe seria a minha cidade de eleição. 
Irrita-me o comportamento chauvinista do típico francês que mal percebe a tua portuguesice passa a tratar-te como lixo. Irritou-me a petulância dos jogadores e a joelhada estratégica. Irritou-me acharem-se mais... Não somos um Pais de mulheres de bigode e saia abaixo do joelho. Não somos pequeninos, porque os países não se medem aos palmos. Não somos analfabetos. Não somos reles tugas, mesmo que guardemos as portas do prédio, limpemos as casas alheias ou façamos cimento. Isso, não nos faz ser menos... Somos recheados de força e coragem. Somos  destemidos. 
E, quanto a França e aos franceses (não todos), deixo-me ficar pelo compêndio musical de Amélie Poulin: apenas e só...



Campeões

Vergonha...



quarta-feira, 29 de junho de 2016

o meu Avô

O meu avô. 
Apetece-me falar-vos do meu avô, de um senhor que conheci há muitos anos e que nos últimos tempos, se esquece de pedaços da sua história. 
Fausto de nome. Primeiro Sargento de profissão. Mais de oito décadas de vida, bem vividas, como ele próprio dizia. Conhecido cá por casa por ser muito vagaroso nos almoços e prezar cumprir horas rígidas das refeições. Inseparável do seu garfo escurecido única companhia da cela escurecida da Índia onde estivera detido como preso político tal como tantos Portugueses. Passo quase marchado, lento e vagaroso, a orientar o seu pouco mais de 1,55 m de altura. Moreno com nariz proeminente onde sempre lhe conheci uns óculos. Outrora, barrigudo. Recheado de histórias de jacarés indianos e viagens de barco rumo a Goa. Recheado de uma vivacidade e autonomia que nos faziam esquecer os seus oitenta e muitos anos de vida. 
Mas, os anos correm e as enfermidades chegam, silenciosas. E, quase que de um dia para o outro, perdes duas dezenas de quilos e deixas de saber em que dia estamos. Não te apetece sair, porque uns miúdos esqueceram o respeito que impunhas e roubaram-te a carteira, após te chamarem pelo nome e perguntarem as horas. (Cretinos...) Esqueceste o mapa de Portugal que sabias de cor e salteado. Esqueceste como gostavas de combinar as cores das calças e da camisola. 
Confesso que quando contaste a história da saída nocturna, ri-me porque pensei que estavas a brincar (brincavas com a cara mais séria do mundo), mas o Mundo caiu-me aos pés quando percebi que na tua cabeça, tinhas de facto dormido apenas duas horas, porque a noite tinha sido de festa. Percebi que o homem que se levantava às 6 horas da manhã para regar o quintal alinhado de régua e esquadro e ir à padaria buscar-me pão ainda quente, já não era igual... 
Perdi-te no caminho, por entre a vida apressada e a tua lentamente agitada a tua maneira. 

terça-feira, 28 de junho de 2016

São Joãozinha

Tem perfume a manjerico.Tem as cores de um balão de São João. Ilumina os rostos dos tripeiros num fogo de artíficio que verte na Ponte de D.Luís, maravilhosa. Soa a música de romaria das ruas das Fontainhas. Podia-se chamar de São Joãozinho como tão bem a apelidaram, nascida no dia que o Porto dança até de madrugada a Festa de S. João. 
Bem vinda minha pequena sorte grande, nosso solstício de Verão.

Pré- São Joãozinha



Retratos feitos pela querida Brígida, que não se fez notar no Bloco Operatório, mas que se faz notar nas maravilhosas fotografias que relatam muito deste primeiro sopro de vida... (Aconselho espreitar o portfólio em http://www.brigidabrito.com

Balões com sopro de amor

Amor no colo

Rodeados de amigos






sábado, 18 de junho de 2016

N-ó-s

Não somos de andar de braço dado, nem amuamos se estivermos sem nos falar durante dias e dias. Não exigimos espaço ou tempo. Damos puxões de orelha. Sabemos de cor e salteado quando chegou a mostarda ao nariz da outra.
Somos dos momentos. Somos dos dias maus, das dúvidas existenciais e dos segredos debaixo da farda. Somos dos olhares que falam. Somos dos pedaços de tempo em que as mãos tremelicam e alma abana. Recordo cada segundo que passamos lado a lado. Sentadas no chão da porta da secretaria para entregar o currículo. Prenúncios de paragens cardiorrespiratórias que aconteciam. Somos umas das outras e sabemos estar quando é preciso. Não somos melhores amigas, porque não existe isso.
Quero-vos comigo, a meu lado, para mais um momento... Daqueles que dão vida!
Até já, minhas amigas de e para sempre...



NÓS


sexta-feira, 17 de junho de 2016

Poderosas

Somos feitos de sonhos entrelaçados nos olhos dos outros. Somos de ferro, aço e betão misturados. Somos à prova de bala, corta-fogo, resistentes. Somos de seda oriental pintada à mão, mas que aguenta os rasgões. Somos meninos com nome. Falamos no singular. Temos um rosto. Somos de carne e osso, forrado de força. Não nos escondemos, não baixamos os braços, não nos vendemos, não fazemos voz meiga quando nos apetece explodir. Não somos afáveis para quem não o merece. Não somos actores. Não deixamos de dizer porque fica mal. Mas dizemos com voz, nome e entidade. Não somos cobardes. Não somos vendidos e não gostamos de vozes sussurradas. Somos incómodos, informais, inconvenientes, mas fazêmo-lo com nome próprio... Somos bem mais do que o que se vê. Deixamos pegadas no caminho. Já vivemos muito sobre isso e isso ninguém nos tira: a dor, o medo, a ansiedade, as lágrimas contidas, o primeiro passo,  o chão que ia e vinha. Não percamos tempo a falar sobre aquilo que ninguém mais percebe. Esquecidos, desmemoriados, desprendidos, ocos de integridade e vazios de memória. Também já me esqueci!

Aos fraquinhos, pequeninos, anónimos de coração preto enevoado e cotovelo bem dorido. Às pessoinhas falsas. 
Aguentamo-nos. 
Eis-nos! (a música escondida aqui- carregar link- embala esta crónica)


(Legenda visual: língua de fora)

quarta-feira, 15 de junho de 2016

2 anos de ti

Tenho-te ao lado deitada com os pés mexericos de dedos rechonchudos tão iguais aos meus a empurrarem-me a barriga. Tenho-te ao lado deitada enquanto escrevo sobre ti. 
2 anos de miúda. 
Danças com os olhos vivos, quase esbugalhados, deliciosamente vestidos de umas pestanas vaidosas. Tens um riso mascarado e fugaz, genuíno e que escolhe a dedo. 
O teu cabelo quase não cresce e não se deixa enfeitar com laços de menina. 
Gostas de fazer tudo sozinha, de te sujar, de cair sozinha, de comer sozinha. 
Gostas do colo do Pai. 
Gostas de abraçar o Digo (como lhe chamas) e de ficar 5 minutos na cama dele antes de ires para a tua. 
Gostas de encostar o teu nariz ao meu e fechar os olhos, lentamente, como se estivesses a dormir. 
Pões o dedo no nariz,... muitas vezes, e dizes que o estás a fazer. (Não fossemos nós não reparar...) Dás beijos às flores do nosso pseudo-jardim  e regas os vasos e os pés com o coelho-regador. 
Chutas bem na bola e adoras sapatilhas. 
Não sabes adoecer, porque não gostas do sabor de medicamentos. 
A tua amiga do colégio é a Maria Helena e gostas de te sentar com ela dentro de caixas de fruta. 
Não tens medo de nada. 
Gostas de falar alto, tão sem maneiras, sem mais nem porquê.
Tenho-te ao lado deitada, maravilhosa, rabugenta, tão cara do Pai, tão feitio da Mãe. 
Temos-te ao lado deitada, hoje e sempre, meu amor...



2 anos de N-Ó-S





quarta-feira, 1 de junho de 2016

Os meninos de hoje

Ser menino hoje é ser um adulto em miniatura. É superar os caprichos dos pais. É ter que conquistar os sonhos que não são seus. É comer de faca e garfo e não sujar a camisola com massa à bolonhesa. É falar baixinho, em modo sussurro. É ter horas para dormir, acordar, comer e ter aulas de ballet. É não gostar de chocolate, porque faz engordar. É adorar ervilhas e pedir para ir ao restaurante de sushi. As crianças de hoje são o retrato de pais que têm que dar provas da sua mega-capacidade- de-serem-pais-perfeitos. São meninos de banheiras shantala, de festas de aniversário em armazéns de brincadeira, iguais às dos outros meninos. São meninos de horários inflexíveis e de menus escrupulosos de introdução de papas, sopas e afins. São meninos de unhas rentes e limpas. Não sabem fazer caretas e não põem as mãos no nariz. Nunca se esquecem de lavar os dentes. São meninos que já não têm o sonho de ser bombeiro, escritor ou cabeleireira, porque ser o que os pais não conseguiram é que é bom. São meninos de calças sem remendos nos joelhos e que não sabem jogar à macaca. Aos meninos de hoje não se podem dar mimos ou falar à bebé porque seremos punidos.
São cópias falsificadas e miseráveis dos Pais, que nos dias antes dos exames e das férias grandes vão fazer exames de rotina e avaliações pediátricas, não vá o Diabo tecê-las e alguma maleita venha estragar os planos dos pais. 
Os meninos de hoje crescem rápido, velozes, sem recheio... 
Deixem-nos gargalhar e sujar as mãos! 
Deixem-nos adorar chocolate e partir um copo. 
Deixem-nos ser crianças...



Recomenda-se a leitura do livro "A menina dos olhos grandes..." da autora Micaela Guardiano, pediatra-amiga, que nos faz viajar à infância....
Recomenda-se aos Pais e aos amigos dos jantares, que deixem os filhos sujarem-se, porque os nossos continuarão a enfiar a cara nas massas e a deixar cair água no colo...
A nós, adultos-meninos, que nunca percamos esse encanto.
E, quanto a críticas, venham elas, com ou sem nome (curiosamente, a sua maioria são sem nome ou com nomes do mundo do fantástico), porque o que importa no fundo é que cresçam genuinamente felizes, sem rótulos, sem olhares de soslaio e sem comparações. 


Nós & o livro








sexta-feira, 13 de maio de 2016

Such a fine line...

Às vezes relembro que sou feita de cartolina. Não de papel crepe. Não de papel vegetal. Não de papel  de seda. Sou de cartolina, branca, já bem vincada, que se dobra sobre si mesma, que se molda, que se aguenta. 
Deixo que me escrevam palavras soltas, nomes, momentos, gotas de tempo, mas deixo que o escrevam a lápis, a lápis de cor. Deixo que me desenhem, que me pintalguem, que me abracem. Guardo em mim, restos de cores mal apagados, que fazem parte. 
Não deixo que me recortem. Detesto colagens. Não sou dos papéis emprestados. Não sou dos desenhos de régua e esquadro. 
Sou e serei sempre dos aviões de papel, dos desenhos de meninos de 2 anos, das canetas coloridas e perfumadas da minha infância. 
Sou de cartolina, branca pintalgada, onde só escreve quem eu quero...
Sejamos páginas de papel, de escrita fácil, mas não gratuita...





sexta-feira, 6 de maio de 2016

Brilho contigo...

João. Chama-se João, tem poucos anos de menino, movimentos tímidos, olhos amendoados e um sorriso de gigante. Chama-se João e tem uma polimicrogiria, tal e qual o R. Chama-se João, mas podia chamar-se outro nome qualquer e é um menino, que precisa de terapias, com nomes esquisitos, muitas horas de trabalho incansável e que por vezes parecem não levar a lugar nenhum. Chama-se João e empurra a vida com o sorriso.Chama-se João e tem uma Mãe, com poucos anos de mulher, bonita, radiante, destemida, que leva o Mundo à frente. Conheci-a num Verão Passado atrás de uma banca de feira de domingo à tarde, entre colares e vestidos, alinhados meticulosamente, que as suas mãos e colo de Mãe aprenderam a desenhar para angariar dinheiro para as terapias. E, porque as terapias gratuitas não são suficientes, porque os apoios são escassos, porque o dinheiro vai fugindo, li hoje um outro apelo e não me aguentei...
Quem quiser, puder e dispensar um café por um dia, façam-no pelo João...

Página do João (todos os dados encontram-se na página- basta clicar): TodosJuntosPeloJoao


E, J & R, num encontro casual no Centro de Reabilitação, APPC Porto



Escola Secundária

Revivalismo... É uma escola cinzenta, com caminhos que sobem num escadario, recantos sórdidos de qualquer história secundária. É uma escola da qual sai já há 20 anos, eu e muitos, rumo às mui nobres faculdades. Lembro-me dela, dos recantos, das telhas partidas, da sala da associação de estudantes, do salão de alunos, do bar, de como era fria de tão cinzenta. Lembro-me dos amigos de turma, dos trabalhos em conjunto, dos exames nacionais, das desculpas para fugir às aulas de educação física. Lembro-me dos amores de secundário. Lembro-me das notas que merecia e que não tinha porque era uma escola pública e não um colégio de elite. Lembro-me de gostar da Professora de Biologia e de Química e de achar a professora de técnicas laboratoriais um ser inerte maquiavélico, picuinhas e resignada (achava que não gostava de mim porque eu era mais gira, risos). Lembro-me do cheiro das salas, a pó de giz e miúdos. Lembro-me de como fui feliz lá e soube não ser a betinha melhor aluna. E, hoje lembrei-me de como era reivindicativa (mantenho), de como lutava sem pudor pelos direitos dos alunos, mesmo dos que não sendo tão exemplares, os tinham. Lembrei-me ao ouvir um aluno dessa mesma escola falar numa entrevista durante o protesto da escola realizado hoje... Já não me lembrava dos olhares da professora que ficava em frente a mim nas reuniões do Conselho Directivo sempre que eu intervinha. Revivi.

Escola Secundária do Padrão da Légua




terça-feira, 3 de maio de 2016

Amamentar, e se fosse consigo?

Amamentar. Não sou fundamentalista. Sou a favor da felicidade de cada um, das opiniões, das vontades. Amamentar é um acto de amor tão grande quanto dar dar um biberão com leite adaptado. Mas, quando me perguntam o que fazer, respondo: o que a fizer sentir melhor. É fundamental explicar  as vantagens do leite materno: a riqueza em imunoglobulinas e anticorpos, a biodisponibilidade, a quantidade certa de água, o "estar sempre pronto e à temperatura adequada". O acto de amamentar, na sua proximidade com o respirar da mãe, o pele-a-pele, a dança das respirações de ambos, os olhares trocados num  amor desmesurado, isso não se explica. Eu amamentei e fá-lo-ei e novo, se puder, mas sem imposições. Mas, não sou fundamentalista, quem não quer amamentar, nem que seja porque simplesmente não quer, tem esse direito. 
O fundamentalismo da amamentação incomoda-me e muito. Senti-o na pele, aliás nos apertos descontrolados nas mamas tensas, mas pouco produtivas de colostro, numa enfermaria de obstetrícia. As mãos frias com cheiro a desinfectante, apertavam compulsivamente os mamilos, ansiosas por uma gota de colostro que teimava em não cair. Eu, inerte por não ter o R no berço (mas sim numa incubadora, com milhares de tubos a entrar e a sair), deixava-me molestar angustiada por  não saber se me doía mais o coração, as mamas ou a laceração do períneo a que tive direito nesse parto de arena.  Senti-o e não o esqueço. Depois disso, pude assistir a essa tortura-práctica-diária durante a minha práctica pediátrica e várias vezes, falei. Vi mães a chorar porque não conseguiam amamentar, porque não sabiam, porque as faziam sentir-se incapazes. 
E, ainda me incomoda mais, esse fundamentalismo ser fugaz. Sim, tal e qual, fugaz, temporário e com validade limitada a 4 meses. Pois é, também eu já o senti em palavras escondidas ou olhares reprovadores. Aleitamento materno, muito bom sim senhor, mas quando envolve a redução de horário  (direito legal), surgem as questões veladas: a dar de mamar, ainda?, até quando?, e, não vai fazer noites?, não vai ser fácil ajustar o horário. E, estas questões, pertinentes por sinal, surgem de médicos e também de pediatras. De facto, nunca me disseram directamente que não poderia usufruir desse direito a redução de horário, mas as perguntas adicionadas a olhares reprovadores, demonstram a "chatice" que vai dar essa opção de Mãe. Mais curioso ainda, é que esses médicos que me olharam de lado, no consultorio de cadeira de couro, passam  atestados às mães dos meninos que lá vão, alegando que estão a amamentar. Passam e bem (eu também o faço), mas só o fazem porque as mães desses meninos não são trabalhadoras do seu serviço...
A OMS defende 6 meses de aleitamento materno exclusivo, mas isso em Portugal é impraticável, a não ser que se alterem regras ou que as mães deixem de trabalhar. Defendo que as mães (as que amamentam e as que não-amamentam, mas alimentam com leite adaptado) possam ter ajustes horários, permeabilidade na sua gestão, sem que sejam sancionadas por isso. Essa mudança terá que ser imposta, porque mesmo os que estão directamente envolvidos na saúde materno-infantil, quando confrontados com o ajuste horário de um trabalhador seu, torcem e bem o nariz...
Deixo em modo plágio o mote: E, se fosse consigo?

Nós, porque sim
Fi-lo e fá-lo-ei de novo



segunda-feira, 2 de maio de 2016

Os padrinhos dos filhos

Os padrinhos dos filhos. São uma escolha tão importante quanto o nome ou a primeira roupa. Tiram horas de sono. São tema de conversa de horas sem fim. As escolhas não podem ser ofensivas para os não-escolhidos.  São feitas tantas vezes com a cabeça e tão pouco com o coração. 
Mas, os padrinhos dos filhos devem ser do coração. Não têm que ter o mesmo apelido. Não têm que ter a mesma profissão ou o mesmo salário. Devem ser aqueles que não ficavam zangados se não o fossem. Devem ser os que estão por perto sem ter que estar. Devem ser os que se esquecem de comprar presentes no Natal, mas que telefonam para saber se estás bem. Devem ser os que se riem connosco. Devem ser os que te vão espreitar ao colégio ou que te dão a mão para atravessar a rua. 
Os padrinhos devem ser os que estão perto, mesmo que longe... 
Os padrinhos a sério são difíceis de encontrar. 
E, achá-los é pensar com o coração, deitar fora os apelidos e borrifar-se para os que ficam zangados por não serem escolhidos.


Viagem à Índia: Namastê MP (um Baby Shower do outro lado do mundo)

Tenho (e terei) a Índia nas papilas gustativas e o perfume a especiarias  no nariz, até ao dia em  que me sentar em frente ao Taj Mahal. Tenho em mim o cabelo escorrido e negro e  deposito na anca o jeito dançarino das musicas  de Bollywood. E, foi assim que nasceu a ideia de um baby-shower do Oriente. 
O som indiano de fundo, as cores vivas nas toalhas e pormenores, o bolo que nasceu como que por magia tal e qual como o idealizei, as bolachas-menina-indiana, as mãos pintadas nas bolachas e em cada uma das convidadas, as velas, as flores perfumadas, o jasmim, o sari branco com flores. Fizemos esta viagem por cá e esperamos levar-te, minha querida MP, até lá bem longe onde o sol nasce estonteado pelo caril.
Namastê MP!

Criações:
Ideia original- Os Pais
Doces e magia em forma de bolo- made with love
Pinturas de mãos- Mary Poppins
Decoração- Lírio e eu



S&P&MP
Bolachas

Bolo maravilhoso, perfeito e delicioso

Mãos pintadas

O bolo pela criadora

Mimos-doces

Bolachas-menina-indiana







sexta-feira, 22 de abril de 2016

Vacinar, uma picada de amor

Vacinar é um acto de amor numa picada rápida e mordaz, e é assim que começo esta crónica.
Vacinar é uma escolha dos Pais, que envolve a criança-filho e os outros meninos à sua volta.
O que são as Vacinas? São a segunda maior arma do Homem que permitiu uma franca melhoria da mortalidade infantil, logo a seguir ao saneamento básico. Permitem a imunização (protecção) contra determinadas doenças especificas. Protegem a pessoa vacinada (imunidade individual), mas quando existe uma adequada taxa de cobertura vacinal, deixando de haver o agente em circulação, promovem a chamada imunidade de grupo. Cada país tem o seu próprio Programa Nacional de Vacinação, e enquanto Pediatra, orgulho-me do nosso PNV, tão completo, tão protector e gratuito. 
Orgulho-me ainda por ser Pediatra num país onde os Pais ainda pouco questionam a vacinação. Faz parte (e tão bem que faz...). 
Mas, começam a chover notícias de mortes inesperadas, por doenças já erradicadas (e que nunca vi a não ser nos livros), por não vacinação. Acabo de ler mais uma... Os movimentos anti-vacinação vêm a aumentar desde o famoso artigo da Lancet em 1998 que associava a vacina Tríplice (sarampo, parotidite e rubéola) a alguns casos de autismo, cuja relação não fora comprovada. 
O não-vacinar é uma decisão dos Pais que deve ser respeitada. Respeito-a, mas discordo em absoluto. 
A atitude consciente de não vacinar um filho, submete-o a um risco desnecessário e abala a imunidade de grupo. E, se me perguntam: e os riscos das vacinas? a segurança? a associação ao autismo? As vacinas são seguras, protegem, erradicam doenças mortais. Não se comprovam as associações com o autismo.
Reforço: vacinar é um acto de amor ao seu e aos outros.

S, à espera de uma picadela com estilo...







quarta-feira, 23 de março de 2016

Amigavelmente-migas

A-m-i-g-o-s, contam-se pelos dedos de uma mão, e não os conto todos. Poucos mas genuínos, sempre foi assim. A-m-i-g-o-s  escrito com o, despojados, sem comparar ao espelho ou olhares de soslaio no balneário, sem querer trocar roupas giras, sem andar de braço dado pelo corredor da escola, sem saber todas as histórias românticas do miúdo giro da turma do lado, sem diminutivos hipócritas  que perderam letras pelo caminho de "-mor ou -miga", sem obrigações, sem ralhetes de comando, sem definições bimbas de "melhor amiga", sem horas marcadas, sem rotinas.  A-m-i-g-o-s das festas da garagem, das explicações uma hora antes dos testes, dos elogios vaporosos, dos colos quando está a chover, das críticas ao teu cabelo novo com franja ou das calças que não te ficam bem no rabo. Sou desses a-m-i-g-o-s, desses poucos que quase já não há. Sou a favor dos amigos que me dizem que estou bem de salto-agulha, mas que me puxam as orelhas se tomei uma decisão errada. Dispenso os amigos de "-mor ou -miga", que falam mal uns dos outros nos lanches vespertinos com a "-miga" do lado, que elogiam a tua pior saia de sempre e que dão palmadinhas nas costas mesmo quando fazes a maior estupidez aos olhos de todos (porque se assim não acontecer, acabou-se a -mizade, ok?-). 
Por isso mesmo, A-m-i-g-o-s que são meus, quase todos se escrevem com o, contam-se pelos dedos de uma mão, e não os conto todos.

Das poucas que não se escrevem com o


ABC da segurança

Quantas vezes ouço dizer que a distância é curta ou que a criança já não fica bem naquela cadeira, por isso, vai ao colo. A criança enquanto passageira do veículo automóvel, se não adequadamente transportada, é um alvo fácil em caso de acidente. São tantos os pormenores e as ofertas de cadeiras automóvel que torna tudo difícil. Para facilitar a escolha, a decisão e, mais do que tudo, para aprender  a transportar o bem mais precioso que temos, não posso deixar de aconselhar o Workshop ABC da Segurança, já no dia 2 de Abril. 




Imperdivel...


A S a desfrutar da sua cadeira maravilhosamente prática e segura




terça-feira, 22 de março de 2016

S-a-U-d-A-d-E

(S-a-U-d-A-d-E: tão lusitana, mas tão do mundo... Só faz sentido ler este tributo com esta música:
Comptine d'Un Autre Été)

Aos que se vão, aqui e acolá, sozinhos ou em grupo, de fato-gravata e pasta em punho, lado a lado com a senhora com o menino de colo, numa cama de hospital, durante um sonho. Aos que se vão, sem nomes, desmembrados sem tempo para tomar um último café quente. Aos que se vão, de mão dada com o amor de uma vida. Aos que se vão, sem tempo de dizer adeus. 
Mas, muito mais aos que ficam. Aos que esperavam do lado de lá e aos que já não esperavam mais nada. Aos que ficam, que são os que choram, os que sentem o frio da pele, se dela sobrar um pouco para poder sentir. Aos que ficam, abraçados aos retratos em papel, que tem medo de esquecer os rostos. Aos que se arrependem de não terem sido ou não terem dito, enquanto ainda havia tempo. Aos que ficam amarrados à saudade. Aos que ficam atordoados. Aos que continuam a viver. 
Vivo-o semana a semana, fragmentado. Cada dia que vais, morre um bocado de mim, que acorda quando voltas. Cada dia que vais, abafo mais um abraço que te devia ter dado.

Recado para os que ficam: abracem de braços cheios, beijem até perder o fôlego, digam tudo, amem, chorem, vivam cada pedaço de tempo como se fosse o último...


Aos que ficaram de hoje...






sábado, 19 de março de 2016

O Pai tem...

O Pai tem barba a encher as bochechas iguais às da minha avó e pica na minha cara. O Pai tem as unhas roídas e uns dedos iguais aos meus, que se sobrepõe quando está pensativo. O Pai tem palavras rápidas e fica bonito quando está zangado. O Pai tem um perfume que dá comichão no nariz. O Pai tem braços grandes que me levantam e me fazem deitar encostada ao pescoço quente. O Pai tem muitos amigos e gosta de festas. O Pai gosta da parte dos bolos que fica crua e faz doer a barriga. O Pai gosta de abrir os frascos de vidro da Compal para sentir, na ponta dos dedos, o estalido. O Pai gosta de arroz com frango e não de arroz de frango, como a Mãe lhe ensinou a dizer.  O Pai aprendeu a gostar de retratos e fotografias e agora já pede para o fazermos. O Pai ajuda muitos meninos e meninas a nascer mas, a mim, segurou-me nos braços trémulos e vestiu-me roupas de anjo. 
O Pai respira um vento morno na minha cara quando nos deitamos lado a lado ao ritmo dançante do bater do coração. 
O Pai, que é meu, guardo-o em cada fragmento de célula de mim e enche-me de luz a alma.
Agradeço já pelas caminhadas que fazemos e faremos juntos lado a lado, porque quando for maior e me esquecer de o fazer, podes lê-lo aqui.
Feliz Dia de Ti...

S&P, por Ricardo Siva Fotografia

quarta-feira, 9 de março de 2016

Os nomes dos filhos

Os nomes dos filhos. Lembro-me de escrever contos de fada, intermináveis, no auge dos meus delicados e franzinos dez anos de idade (ou talvez menos), sentada numa mesa de ferro verde da casa da minha avó, abafada pelo calor debaixo das telhas. Escrever com uma letra de régua e esquadro desenhada, empunhando um lápis de ponta bem aguçada comprado na loja da Dona Arminda, sem algum erro ortográfico e a deixar-me entrar dentro do conto como uma outra qualquer personagem. Assinava com pseudónimos aventureiros de nomes faustosos que vira em livros nas estantes de casa. Lembro-me de imaginar, sozinha em devaneios, que nomes daria os três filhos que sempre disse que iria ter. O nome dependia do género e nunca de nada mais. Mas, é tão pouco verdade… Gastei alguns dos meus nomes de eleição em afilhados e filhos de amigas. Outros, perdi-os nos leitos de meninos doentes, porque o nome me fazia lembrar um rosto e um destino, por isso não o queria. Ainda outros, conheci-os com gente dentro, gente que fazia que o nome bonito até então, virasse do avesso. Há também os segundos nomes, que não servem de nada, a não ser que precisemos de chamar à atenção, ralhar ou diferenciar as milhentas Anas de sala de aula. Alguns descabidos, por serem imponentes, antiquados, parolos ou feios, passaram a ser preferidos. 
Lembro-me de escolher o nome de cada um dos meus filhos. De ainda não terem um rosto mas o nome já ter uma alma. 
R, de Rodrigo, com uma força destemida, difícil de escrever nessas mãozinhas trapalhonas, a adivinhar o esforço que fazes para tudo o que parece fácil aos outros te deslizar pelos dedos. S, de Sofia, homónima de nome e de alma. Foi o Pai que escolheu e por estranho que me parecesse, a miúda Sofia faz jus a todas as Sofias que conheço. Difícil de vergar e de sorriso farto, enche de luz e conduz-nos por aqui e acolá até onde ela quiser. MP, de Maria Pedro, porque ia ser um Pedro, que afinal não é, e porque junta a graça de uma Maria e um jeitinho charmoso do Pai, adoçando esta gravidez como um gelado de flor de sal...
O significado de cada nome está no coração que está lá dentro e ponto final.

Os nomes com alma e rosto, fotografados pela Brigida Brito

terça-feira, 8 de março de 2016

Não há duas, sem três

E, porque não há duas, sem três...
Barriga voluptuosa que insufla como um balão de S. João, desejo de molho escarlate de francesinha, nervoso-miudinho a cada exame, mais doce que um balde a verter pipocas nos cinemas do Arrábida...
Apresento a MP, menina-trapezista na minha barriga, a prometer fazer girar o mundo ao contrário com um sorriso...


MP & eu




A nós, mulheres


Há mulheres: com cabelos esparguete ou em novelo, tingidos de cor da palha ou da noite, umas com lábios pincelados de compota de morango, outras com lábios gretados do frio, umas com formas voluptuosas, outras singelas, umas com mãos de cetim mergulhado em óleo de maracujá, outras com mãos ásperas como a língua dos gatos.
Há mulheres: enamoradas, independentes, casadas, divorciadas, viúvas. Há mulheres: sozinhas ou acompanhadas.
Há mulheres: com clutch, com cestas de verga, com carteiras sofisticadas, com sacos de trapos.
Há mulheres: com sonhos, ideias e pensamentos nas pontas dos dedos, que fazem, constroem e rodopiam ao som do bater do relógio, outras com uma apatia generosa de viver, que ficam sentadas, que se moldam e definham.

Às mulheres de sonhos nas pontas dos dedos que conheço... (Abaixo, algumas mulheres cujas pontas dos dedos, se cruzam com as dos meus, no reino dos príncipes e princesas.)














segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

R-i-R

R-i-R, é não conter a felicidade nos lábios, é ter cócegas na alma, é um aperto quente com perfume a amoras no fundo da barriga.
É pé descalço na areia fria molhada. É a mão roliça e tonta que enrola no pescoço com o acordar do sol. É o perfume a caril dissolvido nas ruelas estreitas de cor. É um gole de água fresca. É uma flor do meio do caminho que vem surdina da mão para o cabelo preto. É o vento que sopra pela janela aberta do carro. É um casaco tecido por agulhas débeis ainda não esquecidas. É um retrato em papel. É o abraço inesquecivel à porta da urgência. É o perfume a flores de primavera às duas da manhã. É um colo. É um crepe enrugado com chocolate quente já derretido. É uma loucura de véspera de Natal. É o inesperado. É a gargalhada da mesa do lado na esplanada. É um bolo acabado de cozer. É um ponto de exclamação, mas também pode ser reticências. É um biquini branco a desenhar a pele chocolate. É a mão que se entrelaça a primeira vez. É uma viagem de olhos vendados. É uma surpresa. É um suspiro. É um passo trapalhão que não sabia se ia dar. É um frasco de vidro recheado de gomas pegajosas de mil cores. É deitar numa cama acabada de fazer. É uma dança de borboletas na barriga. É uma música que se solta na sala de espera.  É um bom dia ao porteiro esquecido. 
R-i-R, é um remédio gratuito. 
R-i-R, é a voz muda da alma... Riam, façam rir, sorriam, gargalhem!

Hoje é o Dia Internacional do Riso!




quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Lello, 110 anos

Levanta-se num alto bem rendilhado na rua inclinada que une a Igreja dos Clérigos à Praça da Faculdade de Ciências. Levanta-se hoje para mais um aniversário. 
É a livraria mais bonita do Mundo e é tripeira. Já foi um pouco só minha e de muito poucos que lá entravam, há uns 20 anos atrás. Era um refúgio de fim de tarde de terça-feira antes de entrar na aula do Instituto Americano agora desaparecido. Subia as escadas imponentes sempre pelo lado direito (e não se porquê) e ficava a memorizar excertos de textos, frases e dizeres que por qualquer motivo gostava. Era fácil lá entrar, sem confusão ou filas intermináveis. Os livros tinham outro encanto, alinhados desalinhadamente nas prateleiras bem altas, mas acho que durante os anos a fio em que lá entrei quase todas as semanas, não cheguei mesmo a comprar nenhum... Sabiam a história e cheiravam a papel novo. Havia-os também mais velhos, com as capas já desgastadas e eram estes que abriam os braços para lhes pegar no colo. Perdia-me horas a fio. Até acho que já me conheciam, porque o Boa Tarde passou a ser um Olá pelo senhor monárquico da caixa. 
O Porto cresceu, as ruas encheram-se de vida e a alma tripeira genuína e vivaça rejuvenesceu e, com o boom, a livraria ficou conhecida tal como eu já a conhecia: a mais bela livraria do Mundo!


Contorcido maravilhoso da escadaria escarlate