Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe



Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe


quarta-feira, 29 de junho de 2016

o meu Avô

O meu avô. 
Apetece-me falar-vos do meu avô, de um senhor que conheci há muitos anos e que nos últimos tempos, se esquece de pedaços da sua história. 
Fausto de nome. Primeiro Sargento de profissão. Mais de oito décadas de vida, bem vividas, como ele próprio dizia. Conhecido cá por casa por ser muito vagaroso nos almoços e prezar cumprir horas rígidas das refeições. Inseparável do seu garfo escurecido única companhia da cela escurecida da Índia onde estivera detido como preso político tal como tantos Portugueses. Passo quase marchado, lento e vagaroso, a orientar o seu pouco mais de 1,55 m de altura. Moreno com nariz proeminente onde sempre lhe conheci uns óculos. Outrora, barrigudo. Recheado de histórias de jacarés indianos e viagens de barco rumo a Goa. Recheado de uma vivacidade e autonomia que nos faziam esquecer os seus oitenta e muitos anos de vida. 
Mas, os anos correm e as enfermidades chegam, silenciosas. E, quase que de um dia para o outro, perdes duas dezenas de quilos e deixas de saber em que dia estamos. Não te apetece sair, porque uns miúdos esqueceram o respeito que impunhas e roubaram-te a carteira, após te chamarem pelo nome e perguntarem as horas. (Cretinos...) Esqueceste o mapa de Portugal que sabias de cor e salteado. Esqueceste como gostavas de combinar as cores das calças e da camisola. 
Confesso que quando contaste a história da saída nocturna, ri-me porque pensei que estavas a brincar (brincavas com a cara mais séria do mundo), mas o Mundo caiu-me aos pés quando percebi que na tua cabeça, tinhas de facto dormido apenas duas horas, porque a noite tinha sido de festa. Percebi que o homem que se levantava às 6 horas da manhã para regar o quintal alinhado de régua e esquadro e ir à padaria buscar-me pão ainda quente, já não era igual... 
Perdi-te no caminho, por entre a vida apressada e a tua lentamente agitada a tua maneira. 

terça-feira, 28 de junho de 2016

São Joãozinha

Tem perfume a manjerico.Tem as cores de um balão de São João. Ilumina os rostos dos tripeiros num fogo de artíficio que verte na Ponte de D.Luís, maravilhosa. Soa a música de romaria das ruas das Fontainhas. Podia-se chamar de São Joãozinho como tão bem a apelidaram, nascida no dia que o Porto dança até de madrugada a Festa de S. João. 
Bem vinda minha pequena sorte grande, nosso solstício de Verão.

Pré- São Joãozinha



Retratos feitos pela querida Brígida, que não se fez notar no Bloco Operatório, mas que se faz notar nas maravilhosas fotografias que relatam muito deste primeiro sopro de vida... (Aconselho espreitar o portfólio em http://www.brigidabrito.com

Balões com sopro de amor

Amor no colo

Rodeados de amigos






sábado, 18 de junho de 2016

N-ó-s

Não somos de andar de braço dado, nem amuamos se estivermos sem nos falar durante dias e dias. Não exigimos espaço ou tempo. Damos puxões de orelha. Sabemos de cor e salteado quando chegou a mostarda ao nariz da outra.
Somos dos momentos. Somos dos dias maus, das dúvidas existenciais e dos segredos debaixo da farda. Somos dos olhares que falam. Somos dos pedaços de tempo em que as mãos tremelicam e alma abana. Recordo cada segundo que passamos lado a lado. Sentadas no chão da porta da secretaria para entregar o currículo. Prenúncios de paragens cardiorrespiratórias que aconteciam. Somos umas das outras e sabemos estar quando é preciso. Não somos melhores amigas, porque não existe isso.
Quero-vos comigo, a meu lado, para mais um momento... Daqueles que dão vida!
Até já, minhas amigas de e para sempre...



NÓS


sexta-feira, 17 de junho de 2016

Poderosas

Somos feitos de sonhos entrelaçados nos olhos dos outros. Somos de ferro, aço e betão misturados. Somos à prova de bala, corta-fogo, resistentes. Somos de seda oriental pintada à mão, mas que aguenta os rasgões. Somos meninos com nome. Falamos no singular. Temos um rosto. Somos de carne e osso, forrado de força. Não nos escondemos, não baixamos os braços, não nos vendemos, não fazemos voz meiga quando nos apetece explodir. Não somos afáveis para quem não o merece. Não somos actores. Não deixamos de dizer porque fica mal. Mas dizemos com voz, nome e entidade. Não somos cobardes. Não somos vendidos e não gostamos de vozes sussurradas. Somos incómodos, informais, inconvenientes, mas fazêmo-lo com nome próprio... Somos bem mais do que o que se vê. Deixamos pegadas no caminho. Já vivemos muito sobre isso e isso ninguém nos tira: a dor, o medo, a ansiedade, as lágrimas contidas, o primeiro passo,  o chão que ia e vinha. Não percamos tempo a falar sobre aquilo que ninguém mais percebe. Esquecidos, desmemoriados, desprendidos, ocos de integridade e vazios de memória. Também já me esqueci!

Aos fraquinhos, pequeninos, anónimos de coração preto enevoado e cotovelo bem dorido. Às pessoinhas falsas. 
Aguentamo-nos. 
Eis-nos! (a música escondida aqui- carregar link- embala esta crónica)


(Legenda visual: língua de fora)

quarta-feira, 15 de junho de 2016

2 anos de ti

Tenho-te ao lado deitada com os pés mexericos de dedos rechonchudos tão iguais aos meus a empurrarem-me a barriga. Tenho-te ao lado deitada enquanto escrevo sobre ti. 
2 anos de miúda. 
Danças com os olhos vivos, quase esbugalhados, deliciosamente vestidos de umas pestanas vaidosas. Tens um riso mascarado e fugaz, genuíno e que escolhe a dedo. 
O teu cabelo quase não cresce e não se deixa enfeitar com laços de menina. 
Gostas de fazer tudo sozinha, de te sujar, de cair sozinha, de comer sozinha. 
Gostas do colo do Pai. 
Gostas de abraçar o Digo (como lhe chamas) e de ficar 5 minutos na cama dele antes de ires para a tua. 
Gostas de encostar o teu nariz ao meu e fechar os olhos, lentamente, como se estivesses a dormir. 
Pões o dedo no nariz,... muitas vezes, e dizes que o estás a fazer. (Não fossemos nós não reparar...) Dás beijos às flores do nosso pseudo-jardim  e regas os vasos e os pés com o coelho-regador. 
Chutas bem na bola e adoras sapatilhas. 
Não sabes adoecer, porque não gostas do sabor de medicamentos. 
A tua amiga do colégio é a Maria Helena e gostas de te sentar com ela dentro de caixas de fruta. 
Não tens medo de nada. 
Gostas de falar alto, tão sem maneiras, sem mais nem porquê.
Tenho-te ao lado deitada, maravilhosa, rabugenta, tão cara do Pai, tão feitio da Mãe. 
Temos-te ao lado deitada, hoje e sempre, meu amor...



2 anos de N-Ó-S





quarta-feira, 1 de junho de 2016

Os meninos de hoje

Ser menino hoje é ser um adulto em miniatura. É superar os caprichos dos pais. É ter que conquistar os sonhos que não são seus. É comer de faca e garfo e não sujar a camisola com massa à bolonhesa. É falar baixinho, em modo sussurro. É ter horas para dormir, acordar, comer e ter aulas de ballet. É não gostar de chocolate, porque faz engordar. É adorar ervilhas e pedir para ir ao restaurante de sushi. As crianças de hoje são o retrato de pais que têm que dar provas da sua mega-capacidade- de-serem-pais-perfeitos. São meninos de banheiras shantala, de festas de aniversário em armazéns de brincadeira, iguais às dos outros meninos. São meninos de horários inflexíveis e de menus escrupulosos de introdução de papas, sopas e afins. São meninos de unhas rentes e limpas. Não sabem fazer caretas e não põem as mãos no nariz. Nunca se esquecem de lavar os dentes. São meninos que já não têm o sonho de ser bombeiro, escritor ou cabeleireira, porque ser o que os pais não conseguiram é que é bom. São meninos de calças sem remendos nos joelhos e que não sabem jogar à macaca. Aos meninos de hoje não se podem dar mimos ou falar à bebé porque seremos punidos.
São cópias falsificadas e miseráveis dos Pais, que nos dias antes dos exames e das férias grandes vão fazer exames de rotina e avaliações pediátricas, não vá o Diabo tecê-las e alguma maleita venha estragar os planos dos pais. 
Os meninos de hoje crescem rápido, velozes, sem recheio... 
Deixem-nos gargalhar e sujar as mãos! 
Deixem-nos adorar chocolate e partir um copo. 
Deixem-nos ser crianças...



Recomenda-se a leitura do livro "A menina dos olhos grandes..." da autora Micaela Guardiano, pediatra-amiga, que nos faz viajar à infância....
Recomenda-se aos Pais e aos amigos dos jantares, que deixem os filhos sujarem-se, porque os nossos continuarão a enfiar a cara nas massas e a deixar cair água no colo...
A nós, adultos-meninos, que nunca percamos esse encanto.
E, quanto a críticas, venham elas, com ou sem nome (curiosamente, a sua maioria são sem nome ou com nomes do mundo do fantástico), porque o que importa no fundo é que cresçam genuinamente felizes, sem rótulos, sem olhares de soslaio e sem comparações. 


Nós & o livro