Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe



Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Natal, em linha isoeléctrica

Sabe a agridoce assistir aos Pais que reclamam da comida ou da posição das cadeiras na Festa de Natal da escola, quando os teus olhos colam fixos e estáticos e a  tua respiração vira apneia, ao vê-lo tentar-se levantar sozinho no palco da actuação do 3ºano. Era a abertura da actuação do seu ano e iniciava-se com o seu acordar lento do chão. Dirigiam-se a ele, um menino e uma menina, provavelmente os maiores da turma, para o erguerem mais rapidamente do seu acordar simulado. A sua destreza bandida às vezes prega partidas e preguiça. O seu erguer foi lento, ou pareceu-me a mim e, por momentos, anosmia, assistolia, apneia, e todos os "a"s da Medicina (que geralmente não são bons), colaram em mim e os meus olhos colaram nele. Morri por segundos... (e acho que nunca vou deixar de morrer aos bocadinhos)
Queridas pessoas do lado, que reclamam e barafustam com os filhos, porque se enganaram na dança ou no momento de iniciar o canto, não desejo jamais que tenham estas linhas isoeléctricas de pensamento... por isso, aplaudam, riam, olhem-nos, por favor!


quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Gira ao contrário

O mundo gira cada vez mais ao contrário. Está tudo errado. Conto dois dias em que aprendi que a ajuda nem sempre é uma benção. 


Um pontapé no meu tempo é como descrevo a primeira vez que percebi que acima de tudo impera o negócio. Chove lá fora. O Porto veste-se de um cinzento-cimento, frio que se dilui pela calçada antiga a fazer a viagem de carro parecer uma volta de montanha-russa. Entro no Centro onde as pessoas andam aos pares a resolver coisas de meninos raros. E, onde os meninos raros gastam o tempo pelos corredores, deambulando sob rodas. É também um sítio de meninos raros onde a vida flui todos os dias igual a sempre. Propus-me a oferecer parte do meu tempo a fazer Consulta de Pediatria gratuitamente e, a resposta, por entre os agradecimentos tecidos, foi favorável, nada entusiasta, mas teria que ser necessariamente remunerada. Recusei. Fá-lo-ia gratuita e voluntariamente, nunca aceitaria dinheiro.

Recusaram-me.
E assim ficamos. Eu com o meu tempo quase acrobático mas que guardei no bolso, o sítio sem pediatra. Engraçado, quase caricato, como se recusa a ajuda voluntária, só porque sim.


A outra vez descrevo-a como um balde de tinta não nos chega. Há cerca de 2 anos, estabeleci milagrosamente a ponte entre um centro de reabilitação algures do Porto e uma grande empresa, para o apoio à reabilitação do mesmo, gratuitamente. Criada a ponte, enchi-me de telefonemas, hiperactiva como sempre. Pois bem, uma pintura, mudança de piso, decoração foram recusadas, porque afinal o que queriam mesmo era uma sala sensorial. Uma bela ideia, ajustada às patologias, mas que a empresa não poderia concretizar. Recusaram então qualquer outra ajuda porque o que queriam mesmo era uma sala sensorial. 




Há um mundo virado do avesso. Pessoas que recusam dádivas. Pessoas que usam os donativos para o fausto, para representação da raridade alheia ou que simplesmente não os aceitam porque queriam uma coisa diferente. Perde-se, e sei que erradamente, a vontade de ajudar, a acrobacia do tempo, a mobilização dos outros.

Mas não se pode perder, porque os raros não se perdem pelo caminho.


Os raros podem ser super heróis, desde que não se percam pelo caminho.